Amadurecer é o processo inevitável de ir deixando, aos poucos, pedaços seus para trás. E esses pedaços que um dia fizeram parte de você, hoje aderem a outra coisa que você apenas vislumbra de longe: o passado. Pois que somos mesmo metamorfoses ambulantes e inconstantes... Sempre deixando pedaços nossos para trás, assumindo outras armaduras, outros casulos, outras asas. Somente para repetir o processo mais e mais uma vez... Como uma constante renovação de nós mesmos, como sucessivas revoluções em nossas almas: metaforseamos. E o melhor de tudo é o poder que temos em escolher os tamanhos dos pedaços que deixamos pra trás, as proporções da revolução. Há até os mais seduzidos, aqueles que deixam tanto de si para trás ao ponto de se perderem pelo caminho. Mas talvez fosse esse o objetivo. Afinal, todos somos livres para escolher o que fazer de nós mesmos. Liberdade é poder ir o quão longe você quiser e não voltar, se você quiser.
A vida, pra mim, vez ou outra se mostra de verdade. Porque acho que na maior parte do tempo, o que prevalece, é o existir. A vida é diferente... Viver é diferente... A vida é cheia de truques, de graças, de piadinhas, de um humor um tanto quanto peculiar. A minha, por exemplo, adora me surpreender. Faceira que só ela, sempre armando acontecimentos inesperados, sempre chamando minha atenção. Quase como uma criança mimada, sabem? Ela chama a minha atenção como se dissesse que está ali, e comigo. Vocês podem não entender essa personificação, mas aí é como eu já disse: a existência, ou seja, as coisas como são, o sol, a natureza, os carros passando, é confudida com a forma como as coisas acontecem, quer dizer, o jeito como nasce o sol (mais amarelo ou mais laranja), a luta da muda pra vencer o solo, o fluxo atordoado do trânsito. Isso tudo que é vida, isso tudo é onde há vida, isso tudo é o que a vida controla.
Enfim, o mais curioso de tudo é o modo como ela chama minha atenção (e tenho certeza que não é só comigo que ela age dessa maneira): promovendo encontros inesperados. De repente, eu encontro o rapaz do ônibus numa festa. De repente, eu encontro uma amiga de infância numa viagem. De repente, eu encontro o moço que tomava minha atenção na oitava série ali na esquina. De repente, pinta a oportunidade de acontecer um encontro que eu nunca pude ver materializado, meu e de toda a outra família que só conhecia por relatos. Antes de tudo isso até, antes até de minha existência, a minha vida já armava seus truques com uma esperança romântica. Ela preparou todo o cenário de filme hollywoodiano pra eu nascer: rapaz paulista, moça paraense, jovens, Hawaii, amor. Depois ela deve ter visto que pra durar mais de duas horas, o filme não pode ter um happy end. Fica enjoativo, não pega bem, as outras vidas cobram uma história mais coerente. (Não que a minha vida seja maria-vai-com-as-outras, é que no início, são todas muito inexperientes pra definirem o que querem pra si.) Acaba a ilusão do filme, mas minha vida é boa, ainda que traquina. Ela decide escolher a sorte, então, de complemento. Afinal, nenhuma vida age sozinha, há sempre outros elementos que dão uma ajudinha nessa empreitada de ser vida. Agradeço por minha vida ter feito uma grande amizade com a sorte. Suspeito que, de algum jeito, ela influenciou sua amiga pro lado bom. Minha vida é faceira, mas é direita. Agora, é claro que surgem outras perguntas, como: "E a sorte, vem da onde?". Porque a vida vem comigo, mas a sorte vem com quem? As coisas todas que existem sempre são trazidas e levadas por alguém, alguma coisa. A sorte veio com o grande mistério, e nem minha vida (desconfio que a sua também não) sabe da procedência dessa amiga. Vai ver é por isso que a influência se torna fácil: o desconhecido é menos complicado de se moldar. Ou talvez eu esteja falando besteiras. Além de tudo, a danada tem um humor... ah, eu adoro! Me divirto, de verdade. Acho que, de certa forma, o jeito de ela me chamar atenção fez com que eu adquirisse uma percepção mais atenta das coisas, dos detalhes. Desde cenas prosaicas até os repentinos encontros, ela me anima com o humor que só nela encontro. Não chega a ser um sarcasmo... mas chega perto de um deboche. Na verdade, acho que na maioria das vezes, ela só quer ver minha reação. Como se impondo situações pra mim, me sussurrasse ao ouvido e me estimulasse a tomar coragem, a agir, a qualquer coisa diferente dapassividade que eu sempre demonstrei. Disso eu ainda não tenho certeza, mas acredito que ela deva ser como essas pessoas que não gostam de mesmice e clamam por mudanças e alvoroço. Quase como eu. Quase.
Talvez a minha vida seja prima distante do Pirraça. Mais boazinha, é claro.
Esse texto vem com um pouco de atraso, mas ainda é tempo.
Desde a noite do dia 30, a chuva já caía. E 31 amanheceu chuvoso. Amanheceu e entardeceu chuvoso. Em pleno meio-dia, Belém era escuro e sensação de conforto que a chuva trás. Vai ver era isso mesmo: o céu chovia pra confortar a história que mora na cabeça das pessoas. O céu em prantos porque sabia dos prantos de 41 anos atrás. O céu pra nos lembrar do que jamais poderemos esquecer, posto que é o pranto que ecoa no país, é o costume adquirido há 41 anos que perpetua e envereda a política, são os resquícios de algo que hoje seria inconcebível.
A ditadura, mais do que tortura, veio para atrasar. Para calar bocas e fechar mentes. Fomos burros, muitos de nós. Fomos burros ao colaborar com os militares, ao descer o cassetete em cima do estudante, ao obedecer as ordens de uma hierarquia, ao seguir o comando de atirar. E ainda há alguns cegos, que passam despercebidos pela história, sem entender que o passado faz o presente; que ignoram aquele velho papo de "é preciso não esquecer o passado para evitar que os mesmos erros sejam cometidos novamente".
Olhem. O que é o Brasil hoje? Um país cheio de lacunas a serem preenchidas, cheio de manias a serem perdidas, cheio de erros de prioridade. Reparem. Não era à toa que nossos presidentes militares desfilavam com seus óculos escuros. Eles não queriam que as pessoas enxergassem a verdadeira alma do negócio.
É preciso atenção. É preciso cuidado. Somos realmente livres ? A liberdade não existe sem prática. A liberdade não existe se continuamos de bocas caladas. A liberdade não existe se continuamos passivos, como outros foram há 41 anos atrás, não contrariando o golpe que se arquitetava. A voz está entalada em nossas goelas e o pensamento ainda é, muitas vezes, retrógrado. São as heranças que trouxemos de uma repressão. São as mudanças que devemos fazer ao sentir o nó que se dá em nossas vozes quando olhamos as imagens do absurdo.
É preciso lembrar, sim. Lembrar para que não se repita a mesma crueldade, lembrar para que possamos sempre exigir o que é nosso de direito. Mas que essa lembrança não fique apenas em letras de música e conteúdos escolares. Que essa lembrança quebre o silêncio que ainda existe e que passemos a exigir uma democracia de verdade, e não uma democracia transformada em eufemismo. A exercer a liberdade, a quebrar os velhos paradigmas sociais, culturais e políticos. Por que movimentos estudantis e sociais ainda são vistos como ação de arruaceiros? Por que a hegemonia comunicacional ainda está na mão de poucos e poderosos que há quatro décadas ajudaram a maquiar a realidade?
É necessário averiguar. O que sobram são os nomes de ruas, de cidades, escolas. Mas seriam esses os nomes merecedores de lugar em nossa sociedade? São os nomes do desespero movido pela força, são os nomes de heróis que morreram no esquecimento, são os nomes dos que ergueram a voz, pixaram muros, combateram com violência, astúcia e humor. São esses nomes que deveríamos proclamar. Porque são esses os nomes responsáveis pelo ensaio de liberdade que fazemos hoje.
A chuva lava a tristeza e molha pra incomodar e nos lembrar de quem somos nós, os brasileiros.